segunda-feira, 5 de maio de 2008

Leitura, um prazer ao alcance de todos.



Naziberto Lopes trabalhou como analista de sistemas de uma grande empresa até 1989, ano em que começou, progressivamente, a perder a visão. Foi um processo difícil de não-aceitação inicial, revolta; mas, aos poucos, Naziberto aprendeu que teria que aprender a ver o mundo de outra forma. Com a ajuda de amigos e familiares, passou pelo processo de reabilitação, inicialmente buscando profissionalização em um curso de massoterapia desenvolvido para pessoas com deficiência visual.
Especializou-se em quiroprática e foi ainda mais adiante: decidiu, aos 36 anos, realizar um antigo sonho: conhecer melhor a ciência da Psicologia. Ao entrar na Faculdade, no entanto, deparou-se com a completa e absoluta falta de livros acessíveis para pessoas com deficiência visual.
Foi então que sua luta pelo acesso universal à leitura teve início. E mais importante: de uma forma cidadã. Naziberto não limitou sua ação a obter benefícios individuais. Ampliou seus esforços em um movimento exemplar de responsabilidade social que culminou na regulamentação da Lei do livro (10753/2003) que garantirá a todas as pessoas com algum tipo de deficiência o livro em formato acessível.

IRIS - Houve um episódio que podemos considerar a gota d'água em relação a sua indignação pela ausência de livros acessíveis?
Naziberto - Acredito que sim. Penso que foi no exato momento em que o responsável pela biblioteca da universidade em que eu estudava veio dar uma palestra sobre o potencial da biblioteca daquela instituição. Eram cerca de um milhão e meio de livros à disposição, e como os alunos poderiam encontrar ali tudo que precisavam para ao estudos dos programas das disciplinas daquele semestre. Alunos sem deficiência visual, é claro .
IRIS - O que é o movimento pelo livro acessível?
Naziberto - É um movimento que agregou pessoas com e sem deficiências em torno do pleito pela democratização e universalização do acesso a todo e qualquer tipo de livro e leitura existentes em nosso país, uma vez que os livros, como são produzidos e apresentados hoje, deixam de fora dele uma significativa parcela social composta por pessoas com alguma deficiência que impossibilita ou incapacita o acesso ao livro em formato convencional, fixado em papel e impresso a tinta. Nosso movimento pleiteou a imediata produção de livros em formatos acessíveis para este imenso público. Todo livro publicado no Brasil deverá ser acessível para pessoas com deficiência, em formato digital, braille e áudio. E graças a Deus e à nossa mobilização, conseguimos!
IRIS - O que o levou a organizar o movimento pelo livro acessível?
Naziberto - A constatação de que não era apenas eu e os outros alunos com deficiência visual da universidade que estávamos alijados do livro e da leitura em virtude de nossa deficiência, assim como da deficiência do Governo e do mercado livreiro. Mas sim, um contingente muito maior de pessoas com outras deficiências que, como a visual, impedem ou dificultam a leitura dos livros em formato convencional. São pessoas com tetraplegia, amputadas de membros superiores, pessoas com dislexia, idosas, com baixa visão, com algum tipo de deficiência intelectual, até mesmo pessoas com Mal de Parkinson - pois imagine como deve ser complicado para uma pessoa com esse problema segurar um livro nas mãos trêmulas e focar a leitura? Enfim, percebi que a proporção da exclusão e da segregação era muito maior do que pensava minha vã filosofia. Por isso, procurei chamar a atenção dessas outras pessoas para que se juntassem a nós, deficientes visuais, nesta luta. E esse “chamamento” deu muito resultado, pois nosso movimento primou justamente pelo seu caráter eclético em termos de participação.
IRIS - Os resultados foram relevantes e relativamente rápidos. Que fatores levaram ao sucesso da ação?
Naziberto - Penso que foi justamente essa sinergia de forças e desejos de todos em dar um basta na situação de exclusão cultural em que vivíamos. Foi esta vontade de lutar por cidadania, pelo direito de podermos escolher, pelo mais completo e absoluto repúdio para com uma vontade incontrolável de determinadas instituições assistenciais que teimavam, e ainda teimam, em submeter a todas as pessoas com deficiência a uma tutela execrável e que não tem mais lugar nos dias atuais. Não queremos ler aquilo que nossos pretensos “tutores” permitem ou escolhem para nós, queremos autonomia, independência e liberdade de escolha.
IRIS - Sua ação é um exemplo de cidadania e se destaca pelo fato de ser uma ação não institucional. O que você tem a dizer para que as pessoas transformem suas indignações em ações de transformação?
Naziberto - Que as pessoas acreditem que é possível transformar o Mundo. Existe na Psicologia uma piada que criamos e que se chama síndrome de Gabriela. É quando percebemos uma pessoa que acredita que ela nasceu assim, cresceu assim e vai ser sempre assim. Quer dizer, não tem jeito, ela acredita que as coisas são imutáveis, cristalizadas, eternas, estáticas. E para que se possa causar qualquer tipo de transformação social é necessário acreditar muito naquilo que você defende, ter muita disposição para continuar sempre e energia para suar a camisa em busca de outras pessoas que acreditem também naquilo. Não é fácil, justamente porque o mais fácil é desistir, é não fazer nada, é deixar tudo como está. O mais fácil é ser mesmo “Gabriela”.
IRIS - Quais os principais pontos de dificuldade?
Naziberto - Por mais incrível que pareça a maior dificuldade é justamente tentar convencer os seus próprios pares. Convencer as outras pessoas que não passam pelo mesmo problema é fácil, pois elas são solidárias ao seu sofrimento. Já para convencer as pessoas que passam pelo mesmo problema que o seu é mais complicado. Primeiro porque muitas delas já assumiram o papel de “Gabriela” e não acreditam que é possível fazer nada a respeito. Segundo porque uma boa parte dos pares são pessoas extremamente orgulhosas, e não acham que movimentos como o que nós levamos adiante surtam algum resultado. Por isso, muitas vezes, fui apelidado de arruaceiro, panfletário, batedor de panelas, entre outros rótulos que tentaram colar em mim. Estas pessoas diziam que somente o diálogo de alto nível deveria ser tentado. Como discordava disso, iniciei gritando nas ruas, batendo panelas, chamando os colegas, os amigos, os vizinhos, enfim, começamos fazendo barulho, até que o barulho se tornou tão alto e ensurdecedor que o Governo acordou para o problema e fomos chamados, ai sim, para o tal diálogo de alto nível. E demonstramos com isso que com inteligência é possível fazer as duas coisas, gritar alto e também falar manso.
IRIS - Como você se sente hoje com os resultados obtidos? O que você aprendeu com essa ação?
Naziberto - Me sinto orgulhoso pelo resultado. Mais orgulhoso ainda pela mobilização nacional que conseguimos desencadear. As diversas listas que recebíamos pelos correios com folhas e mais folhas de papel assinadas, as caixas de e mails que não davam conta de receber tanto apoio, as mensagens de boa sorte, de força e de motivação. Tudo isso foi realmente uma demonstração de civismo maravilhosa de todas as pessoas que contribuíram para o sucesso deste movimento. E com ele posso dizer que aprendi a ter mais confiança na garra e na perseverança do povo brasileiro, afinal, eu era um pouco cético a esse respeito. Sinceramente tive que rever, com muito prazer, aliás, meus conceitos a este respeito.
A propósito, finalizando, gostaria de avisar a todos que em breve estarei inaugurando o meu site que dentre outras lutas vai trazer esta do livro acessível contada desde o seu início até nossa conquista final. Lá também está a publicação do Decreto com o texto acordado entre nós do MOLLA Movimento pelo Livro e Leitura Acessíveis no Brasil e os editores brasileiros. Aguardem que o site está ficando realmente muito legal.

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